Sábado, 21 de Março de 2009

UM DIA QUE FINDOU...

Por todo o lado se comentava a tremenda crise que o país atravessava. O desemprego, a carestia da vida, as tragédias que assolavam o mundo!

- Para onde vamos?! – exclamava o velho, ajeitando os óculos de ver ao perto mas com os quais já não via bem e, ao mesmo tempo, reduzindo o volume da televisão com o pequeno comando em que pegara para aumentar o som quando o locutor falara das ameaças de greve que andavam no ar.

- Vamos para onde tivermos de ir! – respondera a velha que parara de fazer festas ao gato e olhara para ele ainda com olhar de fúria que lhe lançara quando o ouvira pedir-lhe que telefonasse ao filho informando-o de que que não iria nessa noite jantar a casa dele.

António e Celina, com cinquenta anos de vida em comum, já de há muito que viviam num permanente estado de conflito a propósito de tudo e de nada. Ele, a caminho dos setenta e oito anos, era reformado da carris onde fora motorista durante quarenta anos. Ela, mais nova cinco anos, estivera empregada em diversas lojas da baixa, sempre nos intervalos das suas doenças e gravidezes. Ambos viviam já há anos das respectivas reformas que, em conjunto, perfaziam uma maquia que não era para desprezar e que, junta às poupanças que tinham feito em certificados de aforro e num ou noutro “papel” que o gerente do Banco lhes recomendara, lhes permitiriam certos luxos da velhice se o espírito de ambos não tivesse envelhecido tanto quanto os corpos.

Os filhos e, depois os netos, porém, levavam-lhes tudo. Tudo quanto conseguiam ainda amealhar porque a poupança que haviam feito ao longo de toda uma vida equilibrada e cheia de privações desnecessárias, essa já se fora havia anos!

Primeiro, fora o Pedro com a compra daquela motocicleta que poucos meses depois quase o matava, espatifando-se de encontro a uma parede e que lhe valera um internamento prolongado, de mais de três meses, no hospital ortopédico da Parede e todas as cirurgias a que foi submetido e donde resultou o ter ficado com uma perna mais curta do que outra.

Depois, o Serafim, com a droga, e que, antes de morrer com sida, consumira ainda mais do pouco que já lhes restava.

Finalmente a Mariana. Essa estouvada, da qual já nem sequer sabiam desde o dia em que tinha tido o descaramento de lhes dizer, estando grávida, que não sabia nem queria saber quem era o pai do filho que, afinal, não viria a nascer dado o aborto expontâneo que tivera naquele acidente de carro com mais um dos seus muitos companheiros de ocasião. Transformada em mulher da noite, alguém lhes trouxera a notícia de que havia partido com um tipo para África não mais dando quaisquer notícias.

O Pedro fora o único que assentara, constituira família, lhes dera dois netos e era dele o convite para jantar naquela noite.

Casado com uma repariga bastante mais nova do que ele, que já passava dos quarenta e cinco tendo ela vinte e oito, era ele o único que, com a sua Irene, se lembrava com alguma regularidade dos seus velhos pais e os visitava amiúde naquela casa de um só piso, de renda antiga, com dois quartos, uma saleta e uma cozinha e que para as traseiras tinha um quintalinho onde a Celina plantava sempre as suas couves e verduras e o velho António dormia as suas sestas sempre que, estando o tempo bom e saindo da cozinha de “barriga cheia”, como dizia, pedia invariávelmente a Celina que deixasse a loiça e lhe fizesse companhia porque mais tarde ele a ajudaria a lavar, limpar e arrumar.

Ela, porém, porque sabia que essas promessas não passavam disso mesmo dizia-lhe sempre que sim, que estava bem, mas lá se ia arrastando e lavando, loiças, tachos e panelas alguns dos quais lhe escorregavam das mãos caindo ao chão com grande estrondo o que invariávelmente acordava o marido que, com o gato enroscado no colo, roncava, tão profundamente adormecido, que nem os camiões de areia que a toda a hora subiam a ladeira íngreme da rua da sua casa. Subitamente acordado e sempre sobressaltado, sempre gritava: - Caíste, Celina?

- Não, homem, deixei caír a panela da sopa... Já quase não posso com ela e estas mãos, com estes dedos desconjuntados, já não têm força para agarrar sequer no pano com que a limpo...

- Deixa estar que eu te vou ajudar... – respondia ele sem, no entanto, se mexer um centímetro que fosse da cadeira onde estava sentado. O gato, esse também já não se mexia e apenas abria um olho e endireitava uma das orelhas quando o estrondo era maior do que o habitual.

O pior era quando chovia. António, não podendo ir sentar-se ao sol como gostava, ficava toda a tarde em frente da TV e refilando sempre que, na estação e quando punham os anúncios, o som aumentava bruscamente e o despertava daquele dormir crepuscular que habitualmente o inundava finda a refeição ainda que esta fosse, à noitinha, apenas um chá e algumas bolachas.

À noite, já há muitos anos que quase não comiam, limitando-se a aconchegar o estômago com uma chávena de chá de cidereira ou camomila e uma ou outra bolacha que sempre tinham numa velha lata de folha que o Pedro se encarregava de encher todas as semanas.

Celina bem se esforçara em convencê-lo a irem nessa noite a casa do Pedro mas cedo compreendeu que não valeria a pena insistir pois o seu homem já não vivia, limitava-se apenas a existir e, o mais comodamente possível, deixava que o inexorável fim se aproximasse. Se ele fosse primeiro, como ficaria ela? Iria viver com o filho? Será que este ou a sua mulher a convidariam? E se fosse o contrário? Como ficaria o seu António, ali sozinho naquela casa, que ele, sabia-o bem, nunca aceitaria mudar os seus hábitos! Um problema para ele, pensou, mas que se arranjasse pois ela já cá não estaria para se incomodar com isso.

Sabedora da recusa do marido e relutantemente, embora, encaminhou-se para o telefone e ligou para casa do filho a quem teve de mentir dizendo que o pai se revelara um pouco engripado pela tarde, resultado do execessivo sol que apanhara durante a sesta, pelo que lhe pedira para lhe dizer que não estaria em condições de lá ir jantar e que ela, estando ele assim, não o queria deixar sozinho.

- Sabes como é o teu pai, não sabes? Teimoso até dizer basta e que não sabe fazer nada desde que deixou o volante dos autocarros desta Lisboa. Portanto, filho, peço-te que nos desculpes mas não iremos hoje. Ficará para outro dia, está bem?...

- Como queira mãe, como queira – respondeu o filho – mas olhe que a Irene esteve a fazer aquele bolo de café de que o pai e a mãe tanto gostam... Mas deixe lá – continuou – que eu amanhã passo por aí e levo-lhe um pouco do que sobrar, pois os seus netos são também muito gulosos por ele, e verei como está o pai e se será necessário levá-lo ao médico. Combinaremos então outra data para cá virem, está certo? Ok, mãe, ok... Não se preocupe que a Irene compreenderá – respondeu ele à manifestada inquietação que Celina manifestara pela previsível atitude da nora ao saber que não iam mesmo em cima da hora.

Saudando-se da forma do costume, ambos desligaram os respectivos telefones.

Na saleta, sentado na sua velha poltrona, António continuava olhando, mas já sem ver, o programa que a televisão transmitia. Agora o grande problema era fazer com que acordasse o suficiente para o ajudar a dirigir-se ao quarto e depois ajudá-lo a meter-se na cama.

- Acorda homem, acorda! Que estás a fazer aí em frente da televisão se já dormes? Vai-te mas é deitar que eu ajudo-te... Vem, levanta-te... . E Celina, com uma das mãos num dos seus ombros, abanou-o por momentos para melhor o acordar. Porém, António não se movia e, a um safanão mais brusco que ela lhe deu, caíu mesmo para um dos lados aí ficando muito quieto e sem dar acordo de si.

Rodeando a poltrona para o encarar de frente, Celina, viu então, horrorizada, que o o marido teria acabado de morrer pois não respirava embora mantivesse no rosto aquele seu sorriso de que ela tanto gostava e que a conquistara durante toda a vida...

Agarrando-se às pernas dele, sem soltar um queixume ou grito com a lancinante dor que, no momento, lhe atravessava o peito, dor essa que, por escassos instantes, se transformara, de súbito, em breves e frequentes pontadas no coração, e apenas sussurrando um breve “ai meu Deus!...”, ela sentiu que os seus joelhos se dobravam até tocarem o chão e, continuando agarrada aos joelhos do marido, numa atitude de prece e quase de louvor à própria morte, sentiu que esta chegara para a levar também e que era a sua própria cabeça que agora pendia e repousava definitivamente sobre o seu colo...

Sem ter quem a comandasse mais, a televisão permaneceu acesa durante toda a noite enquanto que o gato, o único ser vivo agora naquela casa, se refugiara, assustado e de pêlo eriçado, sob o aparador da sala onde permaneceu, imóvel, até que Pedro chegou no dia seguinte por volta do meio dia, para, logo que sentiu a porta que se abria, se escapulir por ela para não mais ser visto...
publicado por Júlio Moreno às 18:27
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2 comentários:
De Jlio a 22 de Março de 2009 às 22:31
Obrigado. Acho que senti o que escrevi...Penso que terá soado um pouco a música aos ouvidos de alguém...


De melly a 22 de Março de 2009 às 02:01
Gostei!


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