Embora percorrendo caminhos diferentes no que toca ao raciocínio, pontos havia onde estes se cruzavam e calcorreavam juntos parte dos percursos que os levaram à imortalidade. E o grande mérito do conhecimento da cultura grega é, para mim, o de ter tornado universalmente reconhecida uma verdade: - a de que todo o saber está no homem, na sua razão e no seu discernimento sobre as coisas que os seus sentidos lhe vão permitindo conhecer proporcionando-lhe, assim, a análise das suas causas e a comparação dos seus efeitos.
Na antiga Grécia, segundo creio, em torno de uma mente formava-se uma escola. Os discípulos sentavam-se em redor do mestre, escutavam-no e seriam por este incentivados a questioná-lo pondo, assim, à prova o raciocínio individual que, terminando sempre por aflorar o desconhecido, tanto perturbava e intrigava o colectivo. Haveria então uma outra dimensão do tempo.
E porque havia tempo, nascia a investigação. A investigação científico-filosófica, beneficamente pluri-angular, hoje asfixiada, imposta que é por programas de ensino pré-concebidos e estratificados que mais não fazem do que atrofiar a imensa capacidade humana de produzir o novo e decifrar o enigmático. Espartilhou-se o pensamento em nome do progresso e de uma pretensa alfabetização.
A cultura de hoje tal como a vejo pretende transmitir ao homem de uma forma compacta e necessariamente imperfeita o somatório dos conhecimentos básicos de uma qualquer actividade denominada profissão a que este deseja dedicar-se, melhor dito, a que tem de dedicar-se sob pena de não sobreviver no seio do parasitismo social criado por esse instrumento do mal que é o dinheiro!
O homem de hoje, pretensamente livre mas, de facto, impedido de o ser, é obrigado a assimilar o pensamento de outros homens não lhe restando mais do que tornar-se escravo de uma cultura dada como certa, que lhe não pertence e para a qual a sua concordância ou discordância nada importarão. Júris de outros homens, pragmáticos doutores, aferirão, por estandardizadas tabelas o grau dos seus conhecimentos e, em função disso, lhe passarão um diploma que o autorizará a exercer a acção ou o mister para que foi tornado autómato.
E quantos homens conseguem fugir e fogem hoje deste ciclo? Meia dúzia apenas, talvez nem tanto! E aos que fogem, o epíteto de louco será o mais brando com que a conspurcada e parasitária sociedade dos nossos dias saberá tratá-los. Na verdade e pelo caminho que trilhamos, onde a ficção de ontem já é uma tristíssima realidade de hoje, não me surpreenderá que o homem venha a ser mero instrumento sobresselente de uma máquina competindo-lhe apenas oleá-la porque ela pensará e decidirá por si.
Mas cuidado! A juventude dá já sinais de intolerância perante a pseudo cultura que estamos querendo impor-lhe. Os extraordinários movimentos juvenis a que assistimos violência nos subúrbios, concertos que arrastam multidões e atroam os ares, criminalidade em bandos, desportos radicais e culto por quanto seja violento - são, quanto a mim, prova evidente de que algo está errado e terá de mudar já que a verdadeira cultura não poderá ser assim espartilhada e servida ao povo, escolarmente atrofiado, em ingleses giga bites. Primeiro há que voltar à escola, àquela escola de aldeia, isolada, em que o professor, qual segunda mãe, quase senta ao colo os seus alunos e os ensina, com tempo e com diálogo. Assim aconteceu na Grécia antiga onde o homem indubitavelmente terá aprendido a pensar.
Leio, releio, volto a ler e se, quanto ao conteúdo, as mais das vezes fico satisfeito, quanto à forma isso nunca acontece. Fica sempre algo por corrigir, algo de que tenho mesmo de abdicar contra vontade sob pena de nunca aqui vir a publicar o que escrevi. Mas, curiosamente, sinto que isso talvez ajude a comprovar o facto de que a hereditariedade tem muito a ver com tudo o que somos, mesmo com aquilo que não é palpável e que nada ou muito pouco se relacionará com o fisiológico. É que descendo de um prosador insigne e de um filólogo dos mais brilhantes que já teve a nossa língua; de um estudioso nato e figura grande entre os grandes mestres do português falado e escrito! Sem pretender, de modo algum, comparar-me a ele, hoje deleita-me ler, escrever e falar e acho mesmo que muito mais e melhor teria feito na vida se esta febre me tivesse dado mais cedo e se, por não ter tido nunca a percepção de como ela corre e o tempo passa, noutros campos não me tivesse dispersado tanto.
Queridos avô e pai, que o continuaste e que me deste esta vida que hoje tenho, a ambos peço perdão por não ter sido, de vós, um digno seguidor. Possam estas linhas, que neste espaço surgem como que um parêntesis de sentida e singela homenagem que vos presto, suprir para vós, que da outra dimensão da eternidade me olhais agora, o que me falta de engenho nas outras que nunca serei capaz de escrever.
Mas é assim. Nada tenho escrito nestes dias talvez um pouco perturbado por um estado a que chamarei pré-tensional e sem causa aparente, mas que eu conheço bem, e que me levou anteontem à urgência do hospital, às duas da manhã, cheio de falta de ar e com a estranha e indescritível sensação de progressiva asfixia e de desfalecimento eminente. Não foi esta a primeira vez que tal se verificou mas talvez tenha sido esta a primeira em que me senti infinitesimamente minúsculo e inesperadamente tão sensível perante os acontecimentos que me rodearam.
Comparada com as outras, pelo menos quatro, já aí vividas, esta era uma noite relativamente calma naquele serviço de urgência. Aí se podia observar claramente a competência e a dedicação e distingui-la, sem esforço, do laxismo e, talvez até, da má vontade. As batas amarelas, e de outras cores, eram iguais entre si e igualmente se moviam naqueles corredores e salas pouco concorridas; mas os pacientes que, deitados em macas, sentados ou por ali, ainda em pé, esperavam pelos seus cuidados, instintivamente iam escolhendo e chamando à atenção só de algumas que, em se aproximando, deixavam antever a figura humana do médico, médica ou enfermeira que ali se encontrava por verdadeira vocação, dedicado ao seu mister e imbuído do espírito de verdadeiro sacerdócio que tantas vezes vi na saudosa figura de meu pai. E era essa aura que consigo transportava que desde logo começava a aliviar os aflitos e a curar os males de que estes, timidamente, se queixavam mesmo antes de qualquer outro cuidado ou medicamento lhes ter sido ministrado.
E foi assim, à luz de uma consciência, também ela assaz dependente do momento que vivia, que pude, mais uma vez, aferir da grandiosidade de certas profissões e, por puro paralelismo mental, concluir da tremenda nocividade de tantas outras. Estou a referir-me, como bem por certo já concluíram, aos profissionais de saúde e àqueles que, arrogando-se legitimados por uma qualidade emprestada e quase sempre extorquida ao povo através da propaganda enganosa que junto dele fazem, tão aleivosamente vêm construindo o mundo em que vivemos com políticas que só a si mesmos e aos seus acólitos servirão.
Pensei então que haverá ensinamentos na vida que só serão encontrados no anónimo ambiente dos que sofrem e dos que abnegadamente lhes procuram mitigar o sofrimento.
Vê-se, claramente, que o presidente não está ali para confrontar o governo mas sim para cooperar com ele na defesa dos interesses do povo e da nação mas que, se tiver necessidade de mudar de atitude, não hesitará em fazê-lo - e o sinal foi dado com o veto a uma lei sem qualquer alcance prático ou sequer válido conteúdo e apenas feita para granjear a simpatia dos votantes que ainda não sabem ler mas sim e só soletrar!.
Nós já percebemos isso e o primeiro-ministro também o que nos parece sinal de uma convivência pacífica e produtiva. A aquilatá-lo o silêncio comprometido de alguns ministros e a satisfação com que o primeiro tem sabido encaixar alguns directos e muitos ganchos quer da esquerda, quer da direita, a maior parte dos quais desferidos, já depois do toque do gongo, por correligionários menos satisfeitos.
Assim e pelo que julgo poder concluir das posições até hoje assumidas, particularmente pelo regresso à valorização das Forças Armadas no contexto da estrutura-base do País, de tão afastadas que andavam desde os tempos da opereta MFA, e pelo muito que lhe faltará ainda fazer, numa classificação de 0 a 20, terá 18.
Tudo isto a propósito imagine-se! do campeonato do mundo de futebol quando, não sendo grande apreciador deste jogo, só vejo algumas partidas se confortavelmente instalado em casa, pela televisão e longe dos atropelos dos perigosos fanáticos clubistas! Iria, pois, ver o campeonato pela televisão.
A Sport TV empresa surgida do nada e como que por encanto adquiriu os direitos de transmissão dos jogos para Portugal. Até aqui tudo pareceria razoável caso estivessem em causa as empresas nacionais de televisão a RTP, A SIC e a TVI, para já não falar nas suas descendentes e que, com ela, seria suposto terem concorrido quando as emissões televisivas estiveram à venda.
No sábado tinha visto na SIC o jogo de Portugal e, no domingo seguinte, como na SIC não havia transmissões, pude ver os jogos desse dia através da RTL alemã. A locução e os comentários eram em língua alemã, que não domino, mas os bonequinhos, esses podia vê-los perfeitamente a correr no relvado e a marcar e a sofrer golos, afinal tudo o que a mim me interessa e me diverte.
Assim, na segunda-feira, encantado por ter aderido à TV Cabo, voltei a sintonizar a RTL para ver alguns jogos do dia e, qual não é o meu espanto quando vejo surgir um écran preto e uma informação que dizia o seguinte: Emissão interrompida por indicação do Canal, Direitos do Mundial exclusivos da SPORTV para Portugal. 808 200 400" . o número da Sport Tv numa tentativa, mais do que óbvia, de me roubar durante um ano, 240 euros! Queria isto dizer que o Sr. Oliveira (hoje único e todo-poderoso dono da Sport Tv e de mais umas quantas empresas ligadas ao mundo do espectáculo), tinha conseguido meter um pauzinho legal na engrenagem e chamar gulosamente a si toda a paparoca do mundial! Sim senhor! Bem feito, muito bem feito! Mas como conseguiu ele isso? É o que me proponho esclarecer, ou tentar esclarecer adiante:
- Conseguiu isso porque com todo o peso do seu dinheiro comprou o impensável e obteve a cúmplice aquiescência do Governo.
Digo impensável porque não posso sequer admitir que um campeonato do mundo de futebol, envolvendo tantos actores, tantos governos e tantas nações possa, alguma vez, considerar-se propriedade de quem quer que seja que não dos povos que, no seu seio, primeiro, cada um por si e, depois, no seu conjunto, geraram tal acontecimento! É a Fifa que é a dona? É aquele senhor gordo com honras de chefe de estado na bancada que vemos a perorar aqui e ali, dando ordens e excretando prepotência? A quem foi, portanto, feita a compra dos alegados direitos e ao abrigo de que princípio de direito natural, legítimo (que não só legal), foi feito este negócio?
E digo aquiescente cumplicidade do Governo porque a este compete zelar pelos interesses dos cidadãos nacionais e protegê-los contra o poder discricionário do dinheiro e dos interesses que o mesmo faz mover, garantindo justiça e equidade para todos, o que declaradamente não fez neste caso.
Já agora imaginemos, por absurdo, que o dono de uma determinada farmácia decidia comprar os direitos de venda no território nacional de determinados medicamentos tornando, porém, a sua venda livre se os interessados lhe pagassem uma mensalidade de 20 euros! Iria o Governo pactuar com semelhante loucura? Iriam as restantes farmácias aceitar tal despautério? Iriam os cidadãos conformar-se? Perguntas às quais não sei e não quero aqui responder.
Quanto a mim e sobre tudo isto apenas tenho uma certeza: - a TV Cabo, que comigo celebrou um contrato através do qual me garantia o visionamento de determinados canais televisivos, não cumpriu a sua parte e lesou os meus direitos. Por esse facto, irei ponderar a atitude a tomar quanto a ela: se pura e simplesmente rescindir o contrato e esquecer o que se passou ou se rescindi-lo e pedir uma compensação por algo que não me poderá mais facultar em espécie (o momento passou!) mas a que os tribunais poderão e saberão (ainda confio na Justiça) atribuir o correspondente valor indemnizatório.
É assim que vivemos e viveremos, se não houver reacção, sob a pata dos que se julgam poderosos, até porque o parecem ser e disso eles mesmos se convencem! Por mim não estou disposto a isso.
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Em tempo: - Ligando para o número da TV Cabo que aparece no "écran" obtive a resposta de que o canal cuja transmissão estava interrompida estaria a transmitir ilegalmente para Portugal pelo que a TV Cabo terá decidido, não a pedido do Canal mas por sua iniciativa, repor a legalidade e cortar o sinal para as casas dos seus clientes!!!
É caso para dizer, pior a emenda do que o soneto, pois não é a pedido do Canal mas por vontade da TV Cabo, mancomunada com a SPORTV e mentindo descaradamente ao seu público, que as transmissões não se realizam! Quem dará a primeira vassourada nestes meliantes engravatados?
Problemas como este não podem nunca ser examinados por pretensos analistas de profissão, designem-se ou não por sindicalistas. Têm de ser decididos por técnicos competentes que saibam olhar muito para além da Azambuja, que saibam olhar para o País, que saibam prever e prevenir, o que, sem margem para quaisquer dúvidas, constitui tarefa que competirá ao Governo. E que faz o Governo? Há tempos afirmava-se empenhado em reduzir o risco, reduziu-o? Agora diz que irá buscar 30 milhões se a fábrica fechar! Milhões de quê, milhões porquê e milhões para quem? Não para os trabalhadores que nunca soube minimamente incentivar.
O problema das multinacionais que se instalam no nosso país (melhor dito, que se instalavam, porque as condições de leste são, por enquanto, muito mais atractivas) assenta fundamentalmente em dois pressupostos: seriedade e produtividade. A seriedade terá de ser provada e não se compra com benesses de milhões à custa de outros milhões e sem um modelo social de trabalho que satisfaça o trabalhador e o faça trabalhar com gosto e com dedicação; e a produtividade afere-se através do binómio custos de produção e preços possíveis do produto acabado perante a competitividade do respectivo mercado. Ora, não é com administrações e serviços não produtivos a custarem milhões que o Estado motiva e incentiva a força de trabalho nacional, diariamente confrontada com a injustiça social que, por si, é consentida quando não tacitamente apadrinhada. O governo e os ministros que dêem o exemplo de seriedade, contenção, austeridade e trabalho que o povo o seguirá. Salários europeus sem competitividade europeia é o mito que, a prevalecer, bem poderá conduzir à ruína de Portugal e dos portugueses.
Apito de alvorada às 7 e café da manhã às 8. Quando me traziam o café à descrição e que eu aproveitava para receber mais de 1 litro numa velha chaleira que me deram - guardava a maior parte para ir tomando durante o dia, aquecendo-o na água muito quente da torneira traziam igualmente um pão grande que constituía ração de pão para todo o dia.
A refeição, de um prato, pessimamente confeccionada, talvez por sê-lo em grandes quantidades e com maus géneros, era servida ao meio-dia e de novo às 5 horas, constituindo a alimentação prisional. Como delas comia muito pouco, o pão e o café - o mata-ratos, como eu lhe chamava - constituíram a base da minha alimentação por esses dias.
O resto do tempo passava-o a meditar e inventar problemas de palavras cruzadas no papel do interior dos maços de cigarros vazios e cuidadosamente desmanchados, fazendo as quadrículas com a ajuda de uma régua fabricada com o papel estanhado de um deles, muitas vezes dobrado para ficar rígido, e uma ponta de lápis, gasto e mal aparado, que um carcereiro barbudo e simpático me forneceu.
Alguns acontecimentos, porém, vieram perturbar e, de certo modo alterar para melhor, aquela quotidiana melancolia. Refiro-me às comunicações que acabaram por se estabelecer entre alguns prisioneiros daquela mesma ala e que beneficiavam da fácil condução do som que o muro, já noutro apontamento referido, propiciava ao longo do exterior das celas, à primeira encomenda que recebi de casa e às secretas conversas que, às vezes, mantinha com o meu carcereiro de estimação. Em concreto e pelo que de pitoresco encerra e quando mais não seja sobre o estado de espírito que creio ser comum a todo o prisioneiro injustiçado - o que a consciência sente - , misto de gozo e de revolta, não resisto a contar aqui dois deles.
Quanto ao primeiro passou-se o seguinte: - Na véspera, tinha-me sido feita a entrega solene do regulamento prisional, que, divertido, li de ponta a ponta, e do qual nem as poucas vírgulas que continha devo ter observado. Ao contrário do que me era habitual e talvez como resultante directa do meu apreço pelo regulamento em questão, que taxativamente prescrevia como dever de todo o detido o levantar-se ao toque do apito, nessa manhã não me levantei quando o apito tocou, permanecendo sob as mantas e de tal modo que o guarda, mesmo espreitando de esguelha pelo postigo, não me via.
Como consequência normal dessa atitude, ouvi que ele metia a chave à porta e, truca-truca, truca-truca, (expressão gráfica do ruído que fazia), girava-a na fechadura, abrindo-a, após o que entrou na cela prudentemente permanecendo aos pés da cama, colado ao armário, até porque, vendo-me logo, imóvel sob as mantas, deve ter pensado o pior ou que morrera, ou que estaria esperando que se aproximasse para lhe desferir um golpe traiçoeiro e tentar fugir. Por isso não se aproximou, limitando-se a chamar-me: - Senhor detido, ó senhor detido!..., sem obter qualquer resposta. Assim, senti que, pouco depois, saía e trancava a porta com um novo e repetido truca-truca.
Dez minutos passados voltava. Truca-truca, truca-truca, a chave girava novamente na fechadura e ele entrava. Mas não vinha só. Desta vez estava com ele um indivíduo entroncado, mal-encarado, careca, um chefe dos guardas, precisamente o que me havia recebido à entrada e, autoritariamente, me obrigara a despir. E foi este quem, mais afoito, mas não muito, se aproximou um pouco ma da cama e, com a voz autoritária de quem está habituado a ser obedecido sem discussão, disse: Senhor detido, levante-se!
Como resposta, permaneci na mesma, sem me mexer e sem responder. Ele, peremptório, ia insistindo embora cada vez mais brando, e, antes de repetir pela quarta ou quinta vez a intimação que me fazia, decidiu afastar-se e sair, talvez para ir buscar reforços como conjecturei
De novo o truca-truca, truca-truca e o fechar da porta. Foi nessa altura que gritei: - Ó senhor guarda, senhor guarda!...
Truca-truca, truca-truca
a porta abriu-se e, apressadamente, entraram ambos talvez aliviados porque nada parecia ter acontecido comigo!, Destapando então a cara e com a calma que me era possível no momento, acrescentei pausada e claramente: -Vão à
, e utilizei a conhecida expressão de Cambronne, voltando-me a seguir para o outro lado.
Esperei uns dias por uma represália mafiosa que, felizmente para mim, nunca chegou mas lembro-me de ter passado aquele dia quase alegre na prisão.
O outro episódio aconteceu bastante mais mais tarde quando decidi escrever um postal ao meu boxer de nome Nanuk. E o postal, com o endereço postal de minha casa, continha, todo ele, expressões em linguagem canina, como "rrrrnn...au, au", "au, au!... rohnnnn", pelo que, julgando a censura tratar-se de um código, demorou mais de um mes a chegar ao seu destino!... A dúvida sobre se chegaria ou não e quando chegaria fez-me acordar com alento e atento à sua notícia durante muitos, muitos dias!
Sempre inventamos cada uma para passar o tempo!
Em roupa interior, sem lençóis e apenas com duas bafientas mantas de camarata militar, numa cama de ferro, estreita e dura, submetido às tensões que logo se imaginarão, quase não dormi naquela minha primeira noite na cela 37 do Forte de Caxias. Vencido pelo cansaço e confortado, embora, pelas exíguas condições existentes, devo ter adormecido lá para as tantas pois me recordo de um amanhecer estranho em casa desconhecida!
Não era pesadelo. Estava mesmo ali, numa cela penitenciária relativamente pequena mas bem iluminada por um enorme vão para o exterior, duplamente gradeado, por dentro e por fora, onde se moviam duas grandes janelas basculantes, uma em baixo e outra em cima, abrindo cada uma cerca de 40 cm. em relação ao seu alinhamento vertical, espaço mais do que suficiente para garantir um bom arejamento.
À minha esquerda, separado por uma pequena mesa-de-cabeceira de tipo hospitalar, havia outro catre, também de ferro, este vazio, sem roupa e apenas com um colchão ás riscas. À minha frente, logo à direita da porta, num espaço saliente criado na própria parede, um roupeiro largo, de madeira lisa e portas de correr, era continuado, à direita e no sentido da janela, por uma banqueta em marmorite que serviria de mesa para escrever ou tomar as refeições e à qual se juntava uma cadeira de ferro com assento e costas em grossas tábuas lisas de madeira.
Completava a cela uma pequena divisão interior onde se situava uma casa de banho completa, isto é, dotada de lavatório, sanita e chuveiro, com rebordo para suster a água e sistema misturador, e onde havia, quer de dia, quer de noite, água quente e água fria.
O pavimento era esverdeado, cor de azeitona, de cimento e completamente liso e, por isso mesmo, escorregadio quando molhado e propenso a criar imenso cotão proveniente das mantas. A porta, aparentemente de madeira, era de ferro, apoiada em sólidos gonzos, provida de uma pequena janela de comunicação de uns 15 x 15 cm, com abertura só pelo exterior, e de uma sólida fechadura cuja lingueta dava várias voltas.
A visão da janela limitava-se a um estreito pátio com uns dois metros de largura no qual se erguia um muro alto, branco e certamente espesso já que, sobre ele, o meu ângulo de visão me permitia divisar as polainas dos soldados da GNR que aí se deslocavam na sua missão de sentinela.
Aquele - não o sabia ainda ao acordar - iria ser o meu mundo durante os 15 dias que se seguiram, isolado e sem qualquer contacto com o exterior, nem mesmo com a família que, com o telefonema que fizera na véspera, tinha conseguido avisar. Os únicos contactos com seres vivos que me eram permitidos eram com os guardas carcereiros e com um simpático cachorro arraçado de perdigueiro que, pontualmente, comparecia às cinco da tarde, do lado de fora da janela, colocando as suas patas dianteiras sobre o parapeito, à espera das sobras, sempre existente, de uma comida de péssima qualidade.
Era o dia 24 de Abril de 1975. A prisão dera-se na véspera, a 23.
Cansava-me de esperar, havia já mais de duas horas, naquela sala vazia e sem cadeiras, quando lhe falei de novo e perguntei se não vinha ninguém! Que sim, que estavam em reunião
que esperasse mais um pouco. Voltei à sala para mais uma boa meia hora sem que ninguém me chamasse ou sequer aparecesse. Foi então que lhe sugeri que procurasse de novo quem me atendesse e que, entretanto, eu iria tomar café ali mesmo em frente e não me demoraria mais do que dez minutos.
Deveria ter notado uma certa perturbação na sua voz, o que não notei, confesso, pois vi que hesitava e se levantava apressadamente enquanto me dizia que não, que iria chamar e que viriam já
Apercebi-me, entretanto, de que estas minhas últimas palavras haviam provocado um verdadeiro volte-face em toda a situação: - gerara, com efeito, um inusitado movimento de tropas pois descortinei dois fuzileiros armados de G3 que se postavam ao fundo do corredor por onde eu havia entrado e onde antes disso não havia ninguém.
Interrogava-me ainda sobra a estranheza da nova situação quando na minha frente surgiu um ser magricela e pequenino, barbudo e vivaço, a quem ouvi tratar por meu alferes, (convém dizer que não sou alto pois só meço 1,67 e essa coisa que mexia dava-me pelo queixo), acompanhado do que, com propriedade, se poderia apodar de dois gorilas, dos tais que servem de guarda-costas aos cobardolas como o que tinha na minha frente.
Esticando-se todo, eu diria que em bicos dos pés, assumindo o que me pereceu ter sido uma postura idêntica à que teria tomado o próprio cardeal Mazarino se em seu lugar, estendendo-me um papel, proferiu em voz sibilina: - está preso em nome do Movimento das Forças Armadas!
A minha perplexidade foi tal que, para além de me ter conseguido aperceber ainda do ridículo de tal situação, apenas me recordo de ter dito qualquer coisa como Como? e perguntado se poderia fazer um telefonema. Consentido este, numa outra sala e sob escolta de um sargento da armada e de dois fuzileiros, demos, finalmente, início a uma viagem em grande correria para Caxias a bordo de um velho Fiat (daqueles que a PIDE costumava roubar aos prevaricadores) não sem que, no caminho, o simpático sargento fuzileiro que me acompanhava não tivesse mandado parar o carro e ele próprio ido comprar-me dois maços de cigarros.
Cheguei a Caxias seriam umas oito e meia da noite. Depois de uma minuciosa revista pessoal, que me tinha obrigado a despir, e de entregue toda a documentação, dinheiro e demais pertences que trazia, deram-me duas mantas velhas e conduziram-me à minha cela, a 37 do segundo piso das traseiras, onde iniciei um curso intensivo de democracia ao longo dos 8 meses, precisamente 254 dias que permaneci preso.
Restaurava, assim e ainda sem que o soubesse verdadeiramente, pois tudo aquilo me parecia algo de outro planeta e que logo na manhã seguinte se resolveria, a velha tradição familiar de meus avós, tanto materno como paterno, ambos presos por causa dos seus ideais republicanos nos tempos conturbados dos primórdios da República!
Mas não perca leia os próximos capítulos. Mais episódios extraordinários se seguirão
Vem a propósito do que aqui digo o inusitado uso, de há uns tempos a esta parte, da palavra evento. Claro que evento existe e é um termo correctíssimo do nosso léxico tendo plena aplicação em qualquer tempo e quase em qualquer lugar. Só que a vulgaridade do seu uso e abuso, que agora acontece, como que faz diminuir o seu real valor, significado e mérito de palavra erudita, daquelas que só certas pessoas diziam e quando absolutamente adequada, em ocasiões solenes ou a propósito delas, parecendo até afrontosamente ridicularizada e ridícula quando proferida por vendedor de carros usados a propósito da abertura do novo local de vendas!
Recordo também o tempo, já de há muito passado, da utilização do verbo implementar, palavra, que, segundo creio, não existiria em português e terá sido importada e aportuguesada do inglês to implement. E o engraçado é que a ouvi pela primeira vez numa reunião de trabalho na TAP e logo me surgiu a ideia de que ela deveria ter vindo de Londres num dos seus aviões de médio curso!
E o pois? Utilizado, no mínimo, a cada dez palavras de um qualquer discurso ou comentário de circunstância? Lembram-se? Pois é
já tenho saudades do pois! É que eu era mais novo!... Não será isso também um evento?
É que isto das palavras, das pessoas e dos lugares e coisas onde e por que são ditas, não vai lá apenas com a utilização do dicionário de sinónimos e com a erudição TV. Não vai não! Carece de mais, de muito mais. A meu ver, talvez até de sensibilidade coisa que infelizmente não abunda muito nos dias de hoje, sobretudo naqueles que teriam por dever mais contribuir para ela. Refiro-me a certos governantes, deputados e comunicadores sociais, da palavra oral e da escrita, que, certamente por lapsus linguae, dão tão repetidos pontapés na gramática e na fonologia que até me fazem lembrar a banda daquela aldeia, aprumada e alinhadinha, mas onde cada qual toca o que sabe
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