Terça-feira, 18 de Novembro de 2008

O que provavelmente se estará a passar neste momento e algures neste País...

Na corte do gado, sob o sobrado da pequena casa rectangular, de um piso só e paredes de pedra solta, cuidadosamente postas umas sobre as outras mas, aqui e além, rematando pequenos orifícios com pedras mais pequenas, tinham recolhido já as duas vacas vindas do longínquo lameiro onde o dono as levara pela manhã e aonde as fora já buscar pois caía a noite que prometia ser fria neste Dezembro serrano.

As escadas, já muito desgastadas, cujos degaus já não oferecem segurança alguma e que, rangendo sob o peso do homem que as subia, conduziam, através de uma varanda de madeira, tipo alpendre, apoiada em sólidos barrotes que, sob ela, se cravavam na parede, a uma só porta, larga e sólida, de carvalho envelhecido e que, em nova, deveria ter sido bem robusta mas que agora apresentava já o desgaste dado pelo tempo e pela forçada incúria a que os seus donos a haviam já votado, incapazes de executar certas tarefas que requeriam grande esforço físico e não menos discernimento dada a ausência, quase total, de materiais e utensílios necessários a tal reparação.

Enegrecida pelo tempo e pelo fumo, já que era por ali que, quando o vento não estava de feição, se escapava a maior parte do fumo da lareira, entreaberta para dar passagem às pessoas e ao ar que iria permitir que dentro da casa se respirasse e vivesse, a porta rangeu também quando o homem, de grosso capote pelas costas e enxada ao ombro, por ela entrou dizendo:

- Maria, ò Maria, a “Malhada” está prenha e a “Russa” vai pelo mesmo caminho!... Já ambas me não deixaram ordenhá-las da forma do costume esta manhã... Encontrei no caminho o ti Roxo que levava o rebanho dele para casa e que me disse que hoje íamos ter por aqui uma frialdade do camandro pois o Camilo, o guarda florestal a quem encontrara no caminho, assim lho dissera há poucochinho quando com ele se cruzou...

Assim falando o homem fora entrando em casa em busca da mulher a quem se dirigira e com quem se casara havia já um rôr de tempo, tanto que os filhos, agora em França, já lhes haviam dado netos, hoje já crescidos e que por lá andavam nos estudos.

Procurando habituar-se melhor à escuridão da casa e se bem que estranhando o lume ainda apagado, voltou a chamar:

- Maria, ò Maria, onde estás tu mulher dum raio que te não vejo? Não fazes hoje a ceia?... Olha que é tempo... – e assim ladainhando e enxergando já melhor o caminho que fazia, andou uns passos mais na casa adentro sem que nela ouvisse som algum além do barulho que, no sobrado, iam fazendo as suas botas cardadas.

No seu peito, porém, ainda forte de ânimo mas de físico já mirrado, alguma coisa começou a alvoroçá-lo e a fazer com que o coração lhe batesse com mais força do que o habitual.

- Maria!... – repetiu já a mêdo enquanto atirava com o pesado capote para cima do banco do escano que estava montado tal como ao meio dia, depois de comer, o havia deixado, com panelas, canecas, louças e tudo, até o pão cujas migalhas espalhara pela mesa e que sempre eram aproveitadas para as galinhas...

E foi quando melhor firmou a vista no canto onde ela habitualmente se sentava, que a viu, caída, de bruços sobre a mesa por onde corria o lago de sangue que lhe brotava ainda da profunda ferida que ela tinha aberta na cabeça...

A sua Maria estava morta. Fora morta, momentos depois dele ter saído, pelos dois meliantes galhofeiros que ele por ali nunca tinha visto e que, de motoreta, com ele se cruzaram no caminho quando se dirigia, finda a merenda, ao lameiro para acompanhar as vacas e trazê-las novamente para casa...

Sem forças para mais nada do que para soerguer um pouco o corpo que em vida tanto amara e para quem vivera, e que apertou com a força que ainda lhe restava, deixou-se cair subitamente a seu lado e, pouco depois, com o levíssimo extertor de um corpo já cansado de viver, ele mesmo se finou ali, abraçado a ela, até que o Roxo, estranhando a sua ausência, e sentindo as vacas ainda na corte, decidiu subir a velha escada que rangia a cada degrau pisado e com eles deu no dia seguinte já à tardinha...

Na serra e naquela aldeia perdida nos seus contrafortes, dois rapazolas, só muitos meses mais tarde apanhados pala Guarda, haviam morto e feito morrer um casal de velhos que lhes rendera vinte e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos, tanto quanto constava num papelinho escrito pela Maria e encontrado no fundo de uma lata, no quarto do outro lado do tabique de madeira, e que era o seu cofre-forte!

E foi assim que o meu País, todo este País e não só aquela escondida, despovoada e ignorada aldeia de montanha, sem que quase ninguém o notasse, ficou muito. muito mais pobre!
publicado por Júlio Moreno às 19:59
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