Sábado, 15 de Novembro de 2008

RECORDAÇÕES DE UM PEQUENO ESTUDANTE DO LICEU... (1)

O que, sem maldade, me fez rir:


- Como habitualmente, findas as aulas, regressava a casa no eléctrico 17 que apanhava junto ao Liceu e me iria deixar, finda a minha viagem, na Senhora da Luz, na Foz, ao fundo da então chamada Rua do Gama que diariamente subia para chegar a casa.


O eléctrico, passada que era a Fonte da Moura e na longa recta que se estendia à sua frente dali até ao Castelo do Queijo, já na Foz, lançava-se em grande velocidade que, não raro, todos os guarda-freios aproveitavam, se calhar não só para fazerem o “gosto ao dedo” como também para recuperarem de alguns atrazos que porventura tivessem tido no seu, já então complexo, percurso urbano.


E foi precisamente na Fonte da Moura que aquele homem velhinho, de cabelo e fino bigode todo branco, tolhido e movendo-se com imensa dificuldade entrou, pelo que, eu e um colega, o ajudámos a subir para a plataforma traseira do carro eléctrico e daí para o pequeno degrau da porta de correr, sempre aberta, e que dava para o interior do carro.


Depois de, cortezmente, nos ter agradecido a gentileza que com ele tiveramos, sorrindo, o velhinho, rosadinho, elegantemente vestido e muito bem barbeado, preparava-se para caminhar ao longo da coxia central, por entre os bancos, em busca de um lugar na frente, dos muitos que havia vagos, isto quando o eléctrico já ia lançado a toda a velocidade como era hábito e acima referi.


Porém... azar dos azares!


Algo de inesperado fez com que o guarda-freio tivesse de fazer uma daquelas travagens a fundo pelo que tudo, mesmo quem ia sentado, foi projectado para a frente. E o velhinho, que teria acabado de dar o seu primeiro passo pela coxia em busca do seu lugar á vante, não se conseguindo segurar, começou a correr pelo estreito corredor só parando junto das portas da frente, estas sempre fechadas e que separavam a cabina dos passageiros da plataforma onde ia o guarda-freio, onde se agarrou pelo que conseguiu manter-se de pé.


Recordo ainda hoje o olhar surpreendido e circunspecto com que, chegado ao fim do corredor, ele olhou em redor e o seu olhar se fixou em nós que, inocentemente, ríamos da situação criada. E ele, espelhando no rosto um sereno e são sentido de grande humor, ofegante e ainda mal refeito da longa corrida que acabara de dar, comentou:


- Há muitos anos que não corria tanto!...


E não houve naquele eléctrico quem não se tivesse rido, como nós, mas com um riso de respeito, quase de ternura, por aquele homem, pequenino, frágil e velho, naturalmente simpático e alegre e a quem a vida deveria ter ensinado a aceitar, sorrindo, toda a qualquer adversidade...


Agora o que, sentidamente, me fez chorar:


- Noutro dia de inverno, corria o ano de 1969, o eléctrico dezassete parou no Castelo do Queijo onde já muitos eram então os eléctricos parados e os, ainda poucos, automóveis.


À nossa frente um mundo de gente envolvida em trajes negros, as mulheres com chailes sobre a cabeça, chorando e gritando desesperadas,aglomeravam-se na estrada junto ao mar e olhando para ele que mantinha ainda a forte ondulação da tempestade horrível que se verificara na noite aterior e que provocara o naufrágio de muitas traineiras de Matosinhos matando dezenas de heroicos pescadores,os destemidos lobos do mar e de quem tão poucos se lembram quando, à mesa, saboreiam um bom peixe fresco e sabendo a mar...


Curioso, com os meus treze anos, corri para ver o que se passava mas que o meu coração adivinhara já! E, com efeito, ali, quase junto à praia, entre o Castelo e o enorme paredão do porto de Leixões, já em Matosinhos, a ondulação, ainda forte, mostrava, a espaços, as dezenas de corpos que o mar agora devolvia à terra e que os respectivos coletes, que tinham envergados, mantinham e flutuar, aqui e além, as vagas ora os descobrimdo ora os tapando novamente, mas sempre os aprisionando no seu seio e sem deixar que ninguém deles se pudesse aproximar.


Silenciosamente, no meio daquele mar de gente de negro vestida e que nunca antes vira, senti que o ardor quente das lágrimas começavam a cair dos meus olhos e me escorriam pela face onde os esparsos pelos de uma insipiente barba começavam já a surgir aqui e ali... Não saberei dizer quanto tempo ali permaneci, só me recordo de ter chorado lágrimas de alma e, em chegado a casa, me ter refugiado no meu quarto onde permaneci sem nada fazer, apenas pensando amargurado, até à hora do jantar quando minha mãe me chamou porque, entretanto, meu pai já chegara do seu consultório depois de ter tratado e dado a esperança e a saúde que só ele sabia dar á sempre crescente infinidade de pacientes que o procuravam na Caixa de Previdência onde dava consultas das seis às sete mas aonde chegava sempre antes da hora e de onde saía sempre passando das nove...

publicado por Júlio Moreno às 13:51
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