A telenovela de hoje fez-me pensar. Pensar e recordar…
Dedico estas pobres mas sentidas linhas a um grande amigo, já falecido e meu único companheiro nas horas de angústia que ambos vivemos depois de passado o cabo de Sagres numa viagem de regresso a Sesimbra, vindos de Vilamoura, bem como a todos os valentes e heróicos pescadores que, a bordo das frágeis embarcações que poderemos encontrar nos nossos portos e com bem poucos conhecimentos náuticos, a não ser aqueles que a experiência dos erros que cometem lhes vai dando e levados pela força da sua própria temeridade, são permanentemente ignorados pela esmagadora maioria da nação.
O final da tarde do dia da partida parecia-me de mau agouro. O barco, um bom veleiro de dez metros e casco de aço, estava com uma grave avaria na vela grande. Tínhamos sido convidados a ir ao Algarve buscá-lo. Adoro o mar e, nessa altura tinha o meu próprio barco, veleiro também mas de nove metros e a diferença de um para o outro era enorme, nada que se comparasse a um metro apenas. A boca, o calado, as obras vivas, a linha de água, a superfície do velame, a tonelagem de deslocação, tudo é incomensuravelmente maior e quase sem comparação entre um barco e outro.
A tarde estava pardacenta e fresca, e, se bem me recordo, estávamos já em finais de Outubro. O vento, irregular em força, mudava constantemente de quadrante o que, para mim, não era bom presságio. Por isso, cheguei a alvitrar ao dono do barco que partíssemos só na manhã seguinte pois a noite estava próxima e nada me agradaria menos do que navegar de noite, num barco avariado e com aquele tempo incerto. Mas ele teimava em querer zarpar nessa noite alegando afazeres inadiáveis em Lisboa no dia seguinte pelo que obedecemos.
Éramos cinco a bordo. Dois rapazitos e três adultos: - o dono do barco, o meu amigo e eu. De nós os três, só eu estava legalmente habilitado a navegar ao largo por ter a carta de patrão de alto-mar. Os outros dois só possuíam a de patrão de costa, de grau inferior e que só os autorizava a navegar à vista de costa.
Abastecido o barco de água potável e alguns víveres, de gasóleo, para alimentar o seu motor auxiliar de 35 cavalos, inventado o remedeio da avaria na retranca da vela grande, era uma da manhã quando o barco foi finalmente desembaraçado das formalidades portuárias com a Guarda Fiscal e nos fizemos ao mar.
Com receio de alguma temeridade por poder não vir a ser dado o necessário resguardo ao cabo, perigoso, como o são quase todos e muito principalmente o de Sagres quando o tempo se apresentava com tendência para borrasca, avisei que iria dormir e pedi para me acordarem às seis da manhã, caso o não fizesse por mim mesmo, pois a essa hora e pelos meus cálculos, navegando bem, deveríamos estar já perto do cabo onde eu tomaria então o leme para dobrar o cabo e entrarmos então em mar aberto.
Preocupado como estava, não foi necessário acordarem-me pois eram seis horas e eu, que pouco ou nada dormira, estava já desperto e tentando descortinar o farol do cabo dado que era noite ainda embora para nascente a linha do horizonte já se começasse a descortinar.
Para grande espanto meu, pairávamos, de velas içadas e com a retranca rangendo, em frente a Armação de Pêra. Teríamos avançado, quando muito, umas seis milhas para oeste em cinco horas de navegação!
Soube depois que teria havido dificuldades na mareação com o vento que estava e que o barco tinha andado ás voltas quase no mesmo ponto, tendo, inclusive, passado todos por um grande susto quando, de surpresa, uma traineira na faina da pesca e de luzes completamente apagadas, ao ver que o nosso barco, bem iluminado, não só como mandava o regulamento como também por um potente foco que iluminava bem a vela grande, se aproximava em rota de eminente colisão, acendeu um potente farol obrigando-nos a dar uma forte guinada para escapar ao abalroamento.
Soube, mais tarde, que era frequente tal transgressão com certos mestres sem escrúpulos, que, apagando completamente as luzes de bordo dos seus barcos, pretendiam, assim, não denunciar aos restantes os locais onde pescavam.
Corrigida a mareação, cingido o barco ao vento algo forte de noroeste e à bolina, não muito cerrada, que a vela não a aguentava, seria meio-dia quando, depois de alguns bordos, atingimos o cabo onde o mar se apresentava já bastante mais forte e as vagas mais alterosas, tal como eu previra que poderia acontecer.
Dado o resguardo de uma boas duas milhas, iniciámos o nosso rumo a Norte antevendo-se difícil a bolina dadas as precaríssimas condições da retranca pelo que a solução era a de nos afastarmos da costa o mais possível a fim de podemos bordejar sem forçar as velas e com certa segurança tendo a costa a sotavento e a mais de dez milhas de distância.
Felizmente que me encontrava ao leme bem preso com o arnês amarrado em ambos os bordos quando uma vaga enorme, que fez do barco submarino, o varreu de proa à popa, só não entrando a bordo por se encontrar fechada a escotilha de acesso ao interior, e me bateu no peito com uma violência e força tais que me deixou, além de encharcado e meio atordoado, sem poder respirar durante algum tempo…
Acertadas as velas para o mar que se adivinhava teríamos pela frente e que já parecia ferver à nossa volta, exalando um forte cheiro a enxofre que não mais esquecerei, definido o rumo e os bordos que deveríamos fazer para ir ganhando alguma latitude sem nunca nos aproximarmos demasiado da costa a sotavento e do corredor de navegação e cabotagem a barlavento, entreguei o leme a esse grande amigo a quem aqui presto sentida homenagem e que mostrou ser um grande marinheiro e um timoneiro à altura das vicissitudes por que depois passámos, quando a força do vento nos obrigou a arrear as velas e a lançar o motor. Mas este “cavitava”, com o hélice fora de água sempre que, tendo subido uma vaga nos precipitávamos de proa para outra já próxima – o período era muito curto - onde se afundava atrazando-nos a marcha. A dado momento, a água misturada com o gasóleo, resultado de um engano cometido por um dos rapazinhos que abasteceu o barco de água potável e se enganou no depósito, fez com que o motor parasse e nos deixasse à deriva tentando repô-lo a funcionar enquanto que o barco abatia perigosamente para a costa onde fatalmente se teria desfeito nas rochas acaso as alcançasse como tanto temíamos.
Eram cerca das seis horas da manhã quando, ainda um pouco a sul de Sines, lográmos que o motor voltasse a funcionar e bem perto da uma da tarde quando, então sempre a motor, fundeámos, exaustos e encharcados, no porto de Sesimbra onde nos esperavam familiares angustiados pois, tendo tentado ligar para bordo, não tinham conseguido obter comunicação connosco, recebendo como resposta da Rádio Marconi que que muitos telefonemas tinham tentado contactar o barco, que não respondia, e sabiam que, para o sul, o temporal era já grande.
Escrevo isto hoje porque a telenovela me fez pensar no pouco valor e na saloia e estúpida arrogância com que certa gente se atreve a criticar o peixe que lhes é servido sem se deter um pouco para pensar no que passam todos aqueles que, no mar, lutam para lho por na mesa…
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